Pular para o conteúdo principal

Lourenço Diaféria

 Lourenço Diaféria foi um renomado jornalista e escritor brasileiro. Ele nasceu em 1933 em São Paulo, e faleceu em 2008. Diaféria é conhecido por suas crônicas e textos que abordam temas do cotidiano, da cultura brasileira e das experiências pessoais.

Sua carreira na escrita começou como repórter e cronista, contribuindo para diversos jornais e revistas, incluindo o jornal "Folha de S.Paulo". Suas crônicas muitas vezes tratavam de questões sociais, culturais e políticas, e ele tinha o talento de observar a vida com uma perspectiva única e sensível.

Lourenço Diaféria conquistou um público fiel ao longo dos anos devido à sua escrita acessível e envolvente. Ele conseguia transformar as experiências comuns em reflexões profundas e emocionantes. Suas crônicas eram apreciadas por sua capacidade de conectar-se com os leitores e transmitir a essência da vida brasileira. Foi um importante escritor e cronista brasileiro cujo legado literário continua a ser celebrado por suas contribuições significativas para a literatura e o jornalismo no Brasil.

O jornalista foi preso em 1977 pelo regime militar devido ao conteúdo da crônica “Herói. Morto. Nós.”, considerada ofensiva às Forças Armadas. A crônica comentava o heroísmo do sargento Sílvio Delmar Hollenbach, que pulou em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um menino. A criança se salvou, mas o militar morreu, vencido pela voracidade dos animais. A crônica também citava o duque de Caxias, o patrono do Exército, lembrando o estado de abandono de sua estátua no centro da capital de São Paulo, próximo à Estação da Luz. Diaféria contratou o criminalista Leonardo Frankenthal e foi considerado inocente em 1980.

Abaixo a brilhante crônica: “ Herói. Morto. Nós.”

“Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas, para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.

O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.

Que nome devo dar a esse homem?

Escrevo com todas as letras: o sargento Silvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.

Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo.

Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói, como o santo, é aquele que vive sua vida até as últimas consequências.

O herói redime a humanidade à deriva.

Esse sargento Silvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.

Está morto.

Um belíssimo sargento morto.

E todavia.

Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.

O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel – onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer – oxidou-se no coração do povo.

O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.

O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.

No instante em que o sargento – apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher – salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.

Esse sargento não é do grupo do cambalacho.

Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.

É apenas um homem que -como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem- não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.

O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.

Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.

É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quanto te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.

Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancando do fosso das ariranhas -como você tirou o menino de catorze anos- mas queríamos que alguém fizesse o gesto de solidariedade em nosso lugar.

Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos.

E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis – tarde demais.”

Lourenço Diaféria.









Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O que Machado de Assis e Dostoiévski têm em comum?

  Quando se trata de grandes mestres da literatura mundial, dois nomes frequentemente surgem em discussões sobre genialidade literária: Machado de Assis e Fiódor Dostoiévski. Embora de origens geográficas e culturais distintas — o primeiro, brasileiro, e o segundo, russo —, esses dois escritores compartilham uma série de semelhanças em suas obras e em suas abordagens à condição humana. 1. Profundidade Psicológica: Tanto Machado de Assis quanto Dostoiévski são conhecidos por suas narrativas que exploram as profundezas da psique humana. Em obras como “Dom Casmurro” e “O Idiota”, Machado e Dostoiévski, respectivamente, mergulham nas complexidades dos sentimentos, das motivações e das contradições dos personagens, proporcionando aos leitores uma visão penetrante da mente humana. 2. Ironia e Sarcasmo: O uso magistral da ironia e do sarcasmo é uma característica marcante tanto da prosa de Machado de Assis quanto da de Dostoiévski. Enquanto Machado frequentemente emprega esses recursos pa...

Internacional Latino Book Awards: a premiação de “Iatrogenia, Um Erro Fatal”.

 No panorama literário dos Estados Unidos, onde a diversidade cultural se mistura à paisagem intelectual, o Internacional Latino Book Awards (ILBA) vem emergindo como uma das principais plataformas de reconhecimento literário para autores latinos e obras que abordam a cultura latina e suas várias nuances. Em sua 26ª edição, realizada em 2024, o prêmio consolidou sua posição como um dos mais prestigiados prêmios literários no país, com uma crescente importância global, especialmente para escritores de língua espanhola e portuguesa. A cerimônia deste ano, realizada em Los Angeles no dia 19 de outubro, marcou uma edição histórica, tanto pela magnitude quanto pelo volume de inscrições e diversidade de finalistas. O Internacional Latino Book Awards foi fundado em 1997 pela Latino Literacy Now, uma organização dedicada a promover a educação e a alfabetização entre as comunidades latinas nos Estados Unidos. O prêmio surgiu da necessidade de destacar as contribuições literárias de escritor...

A Inovadora Escrita de Jonathan Franzen

 Jonathan Franzen é conhecido por sua escrita inovadora que desafia convenções literárias e cativa leitores com sua narrativa única. Sua abordagem singular para contar histórias é evidente em obras como “As Correções” e “Liberdade”, onde ele mergulha fundo na psique de seus personagens e examina questões sociais e políticas de maneira perspicaz. O que torna a escrita de Franzen verdadeiramente inovadora é sua habilidade de criar personagens complexos e multifacetados, cujas vidas são entrelaçadas em tramas intricadas. Ele não teme explorar os aspectos mais sombrios da condição humana, enquanto também oferece momentos de humor e compaixão. Em “As Correções”, Franzen mergulha na dinâmica disfuncional de uma família americana, oferecendo uma visão perspicaz sobre as complexidades das relações familiares e os desafios da vida moderna. Já em “Liberdade”, ele examina as interseções entre política, meio ambiente e identidade pessoal, criando uma narrativa envolvente que ressoa com questõe...