Ferraris, Porsches e o INSS
Está ali a foto e a manchete: “Acidente com Ferrari deixa vítima em estado grave”.
A vítima — ou as vítimas, no caso, um casal — estava em um carro pequeno, dirigindo para sua chácara no interior de São Paulo, quando, numa curva, foram atingidos pela Ferrari vermelha que vinha na pista contrária; ao que tudo indica em alta velocidade. Investiga-se a possibilidade de que motorista responsável — ou irresponsável — pelo acidente estivesse disputando um “racha” com outro carro.
Não é preciso muito esforço para achar inúmeras notícias de acidentes graves desses carros potentes, algumas vezes com vítimas fatais.
Numa madrugada em São Paulo, um Porsche azul cruzou a Avenida Salim Farah Maluf a mais de 150 km/h. O limite era 50. Atingiu outro carro, onde Ornaldo da Silva Viana, motorista de aplicativo, 52 anos, voltava de mais uma corrida. O impacto arremessou a vida de Ornaldo contra a frieza do asfalto. O caso ganhou notoriedade, e o motorista do Porsche, Fernando Sastre encontra-se preso. Saiu do local com a mãe no dia do acidente e só se apresentou-se à polícia dois dias depois. No Brasil, esse tempo é suficiente para ajustar a narrativa, contratar advogados e garantir que o sangue nas rodas evapore dos noticiários. Mas, nesse caso, a pressão foi grande. O clamor público, alto. Fernando está preso, à espera do júri.
Mas essa não é a regra.
Em 2023, outro Porsche atropelou um motociclista na zona sul de São Paulo. O condutor, um empresário do ramo de grãos, foi liberado após pagar fiança. O caso sumiu das manchetes. Em 2011, o filho de um desembargador atropelou duas pessoas em Brasília e também saiu ileso — do tribunal e da culpa.
Basta uma pesquisa rápida para encontrar dezenas de casos parecidos: carros potentes (não importa a marca), alta velocidade, suspeitas de racha, motoristas embriagados ou não. A velha discussão se houve intenção de matar (dolo) ou não? Do ponto de vista da justiça, isso é importante para a aplicação da pena proporcional ao crime. Mas, para as vítimas, nada muda: não tiveram escolha alguma. Suas vidas foram interrompidas restando, aos familiares a dor e as consequências da perda.
Ironicamente, as vendas de supercarros batem recordes no Brasil. Proporcionalmente, o país tem um dos maiores mercado desses veículos na América Latina, liderando com folga a venda de marcas como Ferrari, Lamborghini, Porsche e Maserati. Superamos o México nesse segmento e representamos mais de 60% do mercado latino-americano de superluxo. A Porsche, por exemplo, entregou mais de 6 mil unidades em 2024, superando muitos países europeus. A Ferrari vende tanto que suspendeu pedidos: a produção mundial está esgotada até 2027.
Mais recentemente, as manchetes da imprensa foram inundadas com a operação deflagrada pela Polícia Federal que escancarou fraudes contra o INSS. A operação chamada de “Sem Desconto” constatou que mais de seis bilhões de reais foram desviados por uma rede que envolvia servidores, advogados, empresários e “fantasmas”. Sim. Seis bilhões.
A roubalheira teve a desfaçatez de começar no governo anterior e continuar no atual. Tanto faz quem está no comando, porque a velha dama Corrupção está sempre lá — em posição privilegiada, oferecendo a sua contribuição a alguns poucos pilantras.
No pátio da PF, o que foi recuperado na operação cabia em poucas vagas: 34 milhões em veículos de luxo, entre eles Ferraris, Porshes e outros do gênero. É sempre assim: roubam-se bilhões, recuperam-se milhões. Um “desconto” enorme é dado — e nem preciso dizer quem paga a conta. E se os cofres públicos forem obrigados a ressarcir o que foi roubado de pobres aposentados do INSS isso obviamente sairá de algum lugar. E não será do bolso dos políticos.
Dizer que o Brasil é o país da impunidade é um clichê conhecido por todos. E talvez esse seja o nosso maior fracasso: termos nos acostumados com o absurdo a ponto de ele virar apenas bordão de WhatsApp. A indignação só está presente na internet. Parece ser a única forma de expressar nossa dor. Uma catarse virtual.
Então quer dizer que todos os donos desses carrões — patrimônios ambulantes — são ligados a corrupção, lavagem de dinheiro ou tráfico?
Não, obviamente. Existem os ultrarricos, muitas vezes envolvidos com o agronegócio, mercado financeiro ou heranças familiares. Muitos deles estão realmente “interessados” no fato de que no nosso país metade da população vive com menos de um salário mínimo e a fome é presente. Ela, de mãos dadas com a corrupção, atravessa todos os governos.
Certa vez, vendo televisão — e não me lembro bem que programa — uma entrevista com proprietários de supercarros me chamou a atenção. Em certo ponto, um deles, com sotaque paulistano falou rindo: “O que mais gosto é de domingo, pegar minha Ferrari e acelerar nos túneis de São Paulo. Ali, ouço bem o ronco do motor”.
É verdade. Num domingo, estava passando pelo túnel Ayrton Senna e uma Ferrari passou em alta velocidade por mim. O ronco do motor pode ser considerado bonito. Mas também e ensurdecedor.
Tão logo, deixei o túnel a claridade do dia feriu um pouco meus olhos — mas não o suficiente para me impedir de ver os moradores de rua aglomerados do lado direito inicial da avenida Juscelino Kubitschek, em barracas de papelão improvisadas. Nos acostumamos com isso, como se fosse parte da paisagem urbana. É como se ficássemos imunes, com nossa sensibilidade anestesiada. Talvez por autoproteção.
Com certeza o dono da Ferrari, já bem longe, nem teve tempo de ver nada pela velocidade. Estava também concentrado no poderoso e lindo ronco de seu carro.
Foto: Reprodução / O TEMPO.
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