Palavras-chave:
Medicina, COVID-19, Pandemia, Profissionais de saúde.
A pandemia
COVID-19 tem ocasionado a morte de milhares de pessoas ao redor do mundo, e
também causado danos direitos e indiretos às pessoas que sobreviveram a ela, bem como aos que não contraíram a infecção.
Tem sido
comum assistirmos ao redor do mundo e também no nosso meio, manifestações de
reconhecimento aos profissionais de saúde, em particular aos que participam na
linha de frente de combate ao coronavírus. Dentre essas manifestações citam-se
sessões de aplauso da população em horários específicos, saudando os heróis da
saúde.
Recentemente
a prestigiosa revista médica Journal of
American Medical Association – JAMA, publicou um editorial intitulado: “ A
pandemia COVID-19 e os heróis da saúde”. Nesse editorial existem agradecimentos
a alguns nomes específicos, como ao doutor Li Wenliang o oftalmologista chinês
de Wuhan, que alertou as autoridades chinesas da doença, sendo inicialmente
censurado, vindo a falecer 6 semanas depois de COVID-19. Mas também o editorial presta homenagem aos
milhares de profissionais de saúde, médicos, enfermagem, fisioterapeutas,
outros servidores da saúde, funcionários dos estabelecimentos de saúde, equipes
de emergência e resgate, fornecedores de serviços e produtos para a saúde,
etc. Enfatiza que muitos arriscam a própria
vida para salvar a alheia. Uma bonita ilustração da chamada desse editorial nas
redes sociais, ilustra esse nosso artigo.
Antes de
prosseguir, quero esclarecer ao leitor que não tenho nada contra qualquer
manifestação de agradecimento ou reconhecimento aos profissionais de saúde.
Entretanto, é nossa obrigação enxergar a situação como ela se apresenta na
realidade.
Sem dúvida
alguma, os profissionais de saúde realizam atos heroicos diuturnamente em suas
carreiras e não só apenas em época de pandemias. Mas a imagem do herói
personalizada, no campo de batalha apesar do perigo, realizando seu trabalho
independente dos obstáculos, e não se importando com quaisquer consequências ou
lesões que possa vir a sofrer, tendem a encobrir as falências e contradições do
sistema de saúde. Parece se desejar essa narrativa, e isso povoa os noticiários
e as mídias sociais.
Mas e quando
os heróis passam a ser mártires involuntários?
Calcula-se
que mais de 450.000 profissionais de saúde se infectaram de COVID-19, e acima de
600 enfermeiras e enfermeiros morreram em consequência disso globalmente.
O Brasil é o
país com mais mortes de enfermeiros e profissionais de saúde por causa dessa
pandemia. São 173 mortes de profissionais de enfermagem, e esse número pode ter
aumentado. Passamos os Estados Unidos, com 146 óbitos e o Reino Unido, com 77.
Tais números repercutiram na imprensa internacional com reportagens extensas
nos jornais The Guardian e The Wall Street Journal.
A
disseminação do vírus entre os profissionais de saúde depende da disseminação
na população em geral, e de fatores como o afastamento ou não de profissionais
integrantes de grupo de risco. Mas como se afastar se as instituições não
proporcionam isso e as pessoas dependem de seus salários para a sobrevivência?
Além disso é necessário a correta observação de protocolos de prevenção e
principalmente a disponibilidade e uso correto de Equipamentos de Proteção
Individual (EPIs).
Em relação
aos EPIs, as documentações de falta dos mesmos são abundantes ao redor do mundo
e no nosso meio. Existe carência de equipamentos considerados básicos, como
máscaras N95, ou são fornecidas em pequeno número (forçando o reuso). A
exposição das equipes de enfermagem e fisioterapeutas, por exemplo, são muito
mais frequentes e por tempo mais prolongado, o que aumenta o potencial de
contaminação. Os relatos de dramas individuais dessas pessoas e seus familiares
são tristemente comoventes.
Um hospital
americano chegou ao absurdo de despedir uma enfermeira porque ela se recusou a
lavar em casa seus uniformes usados nos atendimentos (os chamados scrubs) enquanto os médicos têm seus
uniformes lavados no hospital. Ela liderou um movimento para poderem usar os
mesmos uniformes dos médicos (disponíveis no hospital), o que foi na verdade o
ponto de partida para uma série de denúncias relacionadas à falta de segurança
nos atendimentos de pacientes com Sars-CoV-2.
Recentemente
foi anunciado que o Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, cortou em
25% o salário e a jornada de trabalho de 33% dos seus 15 mil funcionários. No
Hospital Sírio-Libanês, também na capital paulista, houve redução de jornada de
trabalho e de salários, remanejamento entre áreas e realocação de funções.
Esses dois exemplos foram citados porque são considerados líderes no setor. Um
número significativo de outros hospitais pelo país, também realizaram cortes
semelhantes nas equipes de profissionais de saúde. Além da diminuição de
salários e demissões também está ocorrendo a antecipação de férias. O motivo alegado para tais medidas foi a
redução de receita, ocasionada pela diminuição de atendimentos em ambulatórios de maneira
rotineira, exames diagnósticos e falta de cirurgias eletivas. Essa é a preocupação
dos gestores com os “heróis” da saúde.
Muitos hospitais e instituições de saúde veem na doença e nos excessos
de tratamento uma fonte importante de lucros. Quanto mais se investigar e se fizer
mais lucros serão obtidos. Se houver uma diminuição de lucros, mesmo temporária,
a “melhor” saída é através da redução de despesas. E tristemente, na maioria
das vezes, reduzindo os salários dos que ganham menos.
E quanto aos
“heróis” médicos?
Até
recentemente mais de 126 médicos haviam morrido de COVID-19 no Brasil e esses
números podem ter aumentado. Estima-se uma média de 2 médicos mortos por dia. Outro
recorde nosso: superamos o número de mortes de médicos em relação a outros
países que apresentaram também um número elevado de vítimas fatais por COVID-19. Chama a
atenção também o alto número de médicos idosos e com comorbidades, trabalhando na linha de frente. Muitos seguramente devem ter necessidades e obrigações a
cumprir. As causas apontadas pelas mortes? Não é difícil concluir: condições adversas
de trabalho, falta de equipamentos de proteção individual, serviços mal
estruturados e cargas de trabalho extenuantes. Dois contemporâneos meus da faculdade
de medicina, sem idade avançada e comorbidades importantes faleceram de
Sars-CoV-2.
Precisamos
ressaltar também a possibilidade de sequelas na saúde mental e burnout nos profissionais de saúde,
devido ao stress constante e trauma a que estão submetidos nessa pandemia.
Recentemente uma brilhante médica emergencista de Nova Iorque, tirou a própria
vida por excesso de pressão no atendimento aos pacientes com COVID-19. Fez isso
durante um fim de semana que estava de folga. Ninguém percebeu seus sinais de esgotamento mental.
Os
atendimentos ambulatoriais eletivos foram suspensos. Acontece que muitas
operadoras de saúde não deram muita satisfação aos médicos e não fizeram nenhuma
proposta de pagamento pelo período parado. Virem-se os “heróis”.
Equipes
médicas tiveram seus contratos de prestação de serviços hospitalares
renegociados para baixo, forçadamente e de maneira antiética. Infelizmente a
prática de lucrar em detrimento dos profissionais de saúde não é exclusiva do
nosso país. Nos Estados Unidos isso também é muito prevalente.
Outro dia ouvi de um gestor médico: “Precisamos bater metas”. As metas a que ele se referia eram metas financeiras, e não metas relacionadas à qualidade do atendimento aos pacientes. Muitos adoram incorporar a linguagem do mundo financeiro na saúde. Pacientes passaram a ser chamados de “clientes”. Todos sabemos que a saúde virou um grande negócio. Grandes empresas com capital estrangeiro estão no setor. E como as grandes corporações, temos os CEOs, executivos e gestores,muitos contratados com salários altíssimos. “Precisamos bater metas”…. é repetido como um mantra.
As ações dos profissionais de saúde podem ser heroicas. Mas eles são simplesmente pessoas. E como pessoas precisam ser ouvidas,valorizadas e protegidas pela sociedade, pelos gestores da saúde, e governos. Isso tem que ser feito de uma maneira diferente: com força moral e empatia. Prestem honras aos profissionais da saúde. Mas simplesmente façam mais por eles.
Referências:
1- file:///C:/Users/wilso/Downloads/jama_bauchner_2020_ed_200037%20(1).pdf
2- https://www.statnews.com/2020/05/21/calling-health-care-workers-heroes-harms-all-of-us/
3- https://www.wsj.com/articles/brazils-nurses-are-dying-as-covid-19-overwhelms-hospitals-11589843694
5- https://www.medscape.com/viewarticle/931090?src=soc_fb_200527_mscpedt_news_mdscp_ppe&faf=1
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