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É preciso parar com o "bullying" na medicina.


Palavras-Chave: bullying, assédio, medicina.

“Bullying é uma expressão que significa atos que visam intimidar ou dominar agressivamente outras pessoas, de forma frequente e habitual. Os comportamentos usados para tal fim podem incluir assédio verbal, ameaça, coerção e chegar a extremos.
As intimidações sistemáticas geralmente envolvem uma desproporção de poder entre o agressor e a vítima do abuso, que pode não conseguir se defender por medo de represálias.
A ocorrência e repercussão do   “bullying” tem sido muito discutida nos períodos de educação escolar de crianças e adolescentes. Entretanto a prática desse comportamento abominável é muito comum entre profissionais de saúde, e suas consequências nefastas podem envolver tanto a saúde física quanto mental das pessoas atingidas. Pode levar a quadros de ansiedade, depressão, “burnout” e uso de drogas. Tudo isso pode levar a um comprometimento na carreira das vítimas dessa prática.
Em um estudo que envolveu 1387 estudantes de medicina americanos que estavam no último ano do curso, 42% relataram terem sofrido atitudes de assédio (de diferentes formas) e 84% relataram terem sofrido atos de depreciação durante o curso médico. Essas atitudes em geral vinham de médicos residentes e professores que os supervisionavam.
No nosso meio também existem relatos de práticas abusivas que envolvem estudantes de medicina, inclusive durante o trote universitário. Me recordo que quando estava no terceiro ano do curso, resolvi comprometer parte das minhas férias para fazer um estágio voluntário no centro cirúrgico do Hospital Universitário. Era um estágio valorizado e reconhecido com direito a certificado e tudo o mais (valorizamos muito isso como estudantes). Ao chegar nos últimos dias do curso foi-me atribuída uma missão: entrar em uma cirurgia para ajudar a equipe da urologia que iria realizar uma nefrectomia (retirada de um rim). Na verdade, a minha função seria de passar os instrumentos para os cirurgiões, o que chamamos de instrumentar. Estava orgulhoso de poder “entrar em campo”, como dizemos. Passado algum tempo do início da operação ouvi berros vindo do cirurgião principal: “QUEM AUTORIZOU A SUA ENTRADA EM CAMPO? ESTOU COM UM CASO DIFÍCIL E COM VOCÊ AQUI!!”. Achei que o cirurgião havia sido avisado que eu estaria presente e era um estudante de terceiro ano.  As pessoas que vão instrumentar a cirurgia são as primeiras a se paramentar (colocar as vestes estéreis) para poder montar a mesa cirúrgica e assim fui orientado a fazer. Quando ele chegou, mais tarde me ignorou, e nem perguntou o meu nome. Mas aguentei firme o cirurgião “estrela” (como costumamos chamar os que se acham o máximo).  Quando terminou a cirurgia e retirei o avental cirúrgico, era como se tivesse me livrado de um peso enorme. Sai cabisbaixo pelo corredor e cada pessoa que olhava para mim sentia que era como se estivesse dando um sorriso irônico e pensando: “Coitado desse aí. Mais um triturado”.  Estava terminando o estágio voluntário. À noite liguei e avisei que não iria mais. Nem lembro se consegui o certificado de conclusão ou não. Hoje como cirurgião, me lembro daquela situação passada como exemplo de como não se comportar no centro cirúrgico e tratar as pessoas. Ninguém é culpado das situações difíceis que aparecem durante as operações. Orientações firmes e decididas não tem nada a ver com gritos e grosserias. 
Recentemente conversei com alguns alunos que estão
no internato médico, que são os dois últimos anos do curso onde a imersão hospitalar e clínica é maior. De repente, uma parte do diálogo me chamou a atenção: “Professor, eu gosto do trabalho que envolve os pacientes. Mas alguns médicos residentes ficam o tempo todo nos mandando fazer serviços que me aborrecem muito. Pedem para retirar papéis da impressora toda hora, levar exames no laboratório, e até já perdi a visita médica com o preceptor por causa disso. Isso me causa mais desgaste que avaliar os pacientes”. Creio que todo médico já teve sentimentos parecidos quando estava no internato. Não é uma reclamação exclusiva da geração dos “Millennials”.
Não. O interno não é um “escravo” do R1 (residente de primeiro ano), bem como o R1 não é um serviçal do R2 (residente de segundo ano) e assim por diante. Todos tem um papel especial nos cuidados aos pacientes e no envolvimento com o aprendizado. Parte-se do princípio que a escolha da profissão médica se fez pela decisão de cuidar das pessoas. A medicina é uma profissão de doação contínua e aceitar isso nos faz se sentir melhores e sem frustações. Mas ninguém é obrigado a aguentar maus tratos. Se ocorrerem devem ser abordados. Conversar com outros colegas para se ter uma avaliação melhor da situação e poder levar ao conhecimento da supervisão imediata, pode  ser uma estratégia útil. 
Lembro também que uma vez tive que conversar  privadamente com um residente de ginecologia, que era famoso por gritar com internos enquanto os auxiliava a realizarem partos. Quando aconteceu comigo, expressei minha insatisfação e por incrível que possa parecer os berros cessaram. Tudo tem limites, e a minha abordagem direta nessa situação funcionou.
 O sistema de saúde está se tornando cada vez mais complexo e as cobranças cada vez maiores para os médicos, especialmente por parte dos empregadores. Devemos ter motivação e alegria na nossa prática diária, que em grande parte das vezes é árdua. Desnecessário dizer que todos devem se relacionar com empatia, respeito e solidariedade. Hierarquia de serviços e atribuições não significa praticar abusos e grosserias que só demonstram uma personalidade fraca e baseada em estereótipos. 
Que a boa educação e respeito à individualidade de cada um seja cada vez mais presente nos relacionamentos entre preceptores, alunos, médicos residentes e profissionais da saúde.

Fontes:
1- https://www.nytimes.com/2018/06/14/well/live/doctor-bully-bullying.html
2- DE MELLO VILLAÇA, Fabiana ; PALÁCIOS, Marisa. Concepções sobre Assédio Moral: Bullying e trote em uma Escola Médica. Revista Brasileira de Educação Médica. v. 34, p. 506-514, 2010.




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